sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Valores cristalizados de “Família” imperam e sobrepõem-se aos da Igualdade

As políticas públicas de modernidade têm-se distinguido em vários países por incluírem a dimensão da Igualdade de Género na sua avaliação. Recordamos, a propósito, uma das medidas a adoptar pelos governos, que consta da Plataforma de Acção de Pequim (Conferência das Nações Unidas sobre Direitos das Mulheres, 1995):

“Analisar segundo uma perspectiva de género as políticas e os programas – incluindo os relacionados com a estabilidade macro-económica, o ajustamento estrutural, os problemas da dívida externa, a tributação, o investimento, o emprego, os mercados e todos os sectores da economia – no que se refere ao seu impacto sobre a pobreza, sobre a desigualdade, particularmente sobre as mulheres”.

Ora, o facto do Governo Português ter criado a figura de “visto familiar”, ou seja, uma avaliação quanto ao impacto de todas as medidas governamentais “na vida familiar e no estímulo à natalidade", parece-nos, não só não ir ao encontro das orientações internacionais e europeias em prol da Igualdade de Género, como nos deixa profundas apreensões sobre os valores ideológicos que orientam a futura acção governativa.

Com efeito, bem sabemos como nem sempre os interesses da “família” são os interesses das mulheres e que muitas políticas orientadas para aquilo que se designa por “bem estar da família” são altamente penalizadoras das mulheres nos seus direitos individuais. Sabemos, também, que a essas políticas subjazem recorrentemente valores conservadores que cristalizam modelos familiares e tendem a rejeitar ou desvalorizar tudo o que não corresponde ao seu ideal. Ora, se o facto do Índice Sintético de Fecundidade em Portugal ser dos mais baixos da Europa nos preocupa, consideramos que os apoios à natalidade devem assentar efectivamente em políticas públicas empoderadoras dos cidadãos e das cidadãs, procurando assegurar que a não constituição de família ou a sua tardia constituição não se prende com dificuldades de inserção no mercado de trabalho, com a precariedade dos vínculos laborais, com difíceis condições de vida, entre outros. Uma coisa é não querer constituir família, é um direito que nos assiste e que deve ser plenamente respeitado. Outra coisa é querer e não poder e é aí que o Estado deve procurar intervir, o que passa por políticas de redistribuição dos rendimentos e recursos, pela promoção de um emprego com direitos, por políticas sociais, por justiça fiscal e social, por uma rede de equipamentos sociais de proximidade pela Igualdade de Género.

Infelizmente, observamos o contrário. Em tempos de crise, as políticas sociais são fragilizadas e desvirtuadas: para além de serem encaradas como almofada social para mascarar os impactos sociais de agressivos programas de restruturação económica, elas são transformadas em instrumentos de ideologização conservadora da sociedade, usada para dar cobertura a uma desresponsabilização colectiva relativamente à necessidade de salvaguarda dos direitos civis, sociais e económicos, assumidos desde o pós II Guerra Mundial como compromissos fundamentais a orientar a acção dos Estados e pelos Governos.

Não há um modelo de família, há famílias. Há famílias constituídas por uma ou várias pessoas, famílias com filhos ou sem filhos, famílias monoparentais, recompostas, numerosas, famílias resultante de processos de adopção ou de procriação medicamente assistida – relembramos aliás que esta última continua vedada a mulheres solteiras heterossexuais e lésbicas e que a adopção continua vedada a casais de pessoas do mesmo sexo – famílias todas devem ser reconhecidas e valorizadas.

À família - e, consequentemente, às mulheres - atribuem-se novas responsabilidades terapêuticas no apoio a idosos/as, deficientes, doentes crónicos e no cuidado das crianças, descartando-se o Estado da obrigação de encontrar soluções. Tudo em nome do "bem estar da família” e, acrescente-se, da sobrecarga das mulheres. Quando na página 95 do Programa do Governo se afirma ser necessário “encontrar novos caminhos para a conciliação entre a vida familiar e profissional das famílias, *especialmente das mães*”, as nossas preocupações adensam-se. Assim como outros factos, nomeadamente a falta de medidas de apoio para as famílias monoparentais, o facto de se falar da violência doméstica, apenas na sua componente de crianças, pessoas idosas e com deficiência, não referindo a violência sobre as mulheres (Pág.99 do programa do governo).

No cerne do programa do governo está uma política de austeridade que prioriza o objectivo de conquistar a credibilidade dos mercados financeiros. Nesta política, quem mais vai perder são as pessoas com menos recursos económicos, os/as desempregados/as, os/as trabalhadores/as com vínculos contratuais precários, as pessoas indocumentadas, os/as imigrantes, as pessoas com menos qualificações e, em particular, as mulheres, não só porque são as mais atingidas pelo desemprego e pela precariedade, como também porque sofrem todo o tipo de pressões para abandonar a actividade profissional e garantir apoio familiar, evitando os gastos em equipamentos sociais para crianças e pessoas idosas.

Assinalamos com apreensão os impactos negativos que receitas como as que nos são agora apresentadas têm tido no nosso país e noutros países europeus. A este propósito lembramos as recentes declarações de um especialista da ONU nas questões da dívida, ao apontar que a implementação do segundo pacote das medidas de austeridade e de reformas estruturais na Grécia provavelmente terá um grave impacto em serviços sociais básicos e, consequentemente, nos Direitos Humanos da população grega.

Temos razões para estar muito preocupadas. Podem estar em causa conquistas alcançadas pelas mulheres em muitos anos de história. Os retrocessos civilizacionais, muitas vezes entram com pezinhos de lã, em torno da retórica de inevitabilidade de medidas de austeridade. Avaliar as políticas governamentais segundo um critério de “família”, que não reconheça a sua diversidade e que não esteja assente em princípios da dignidade humana, no mínimo os consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, representa um retrocesso civilizacional que não podemos aceitar.

Lisboa, 18 de Julho de 2011
A Direcção da UMAR
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